“Tu só te preocupa em jogar bola”: a história de Sila Mary na Nutrição Brasileira das quadras de vôlei na infância até à docência

“Tu só te preocupa em jogar bola”: a história de Sila Mary na Nutrição Brasileira das quadras de vôlei na infância até à docência

No quarto episódio da série “Valorizando os Profissionais 60+”, o CRN-8 conta a história de Sila Mary, professora e nutricionista que ajudou a moldar a profissão no Brasil, transformando desafios em oportunidades e inspirando gerações de profissionais.


Na vida, tudo o que precisamos é de um bom saque. Tal qual em um jogo de voleibol, que o saque marca início da partida, na nossa carreira, uma decisão às vezes não pensada inicialmente, pode marcar o começo de uma longa trajetória. Como no caso de Sila Mary Rodrigues Ferreira, nutricionista e a quarta entrevistada do nosso projeto “Valorizando os 60+”. Sila acompanhou a construção de um curso que estava no início, viu leis de segurança alimentar e nutricional serem desenvolvidas e leciona há mais de quatro décadas acompanhando a ciência da nutrição. Tudo isso começou, porque um dia, Sila decidiu jogar voleibol.

“Você só se preocupa em jogar, por isso não passou no vestibular”, foi o que o pai de Sila um dia disse. Para ela, que sempre foi jogadora do esporte envolvida em tantos campeonatos, até poderia fazer sentido. Ela amava jogar. Mas tiveram outros desafios também. “Eu nasci no interior do Rio Grande do Sul, em Alegrete, muito longe da capital e a preparação para cursinho praticamente inexistia”, explica. “Depois, eu decidi fazer um vestibular na Universidade Federal de Santa Maria, mas não deu certo de primeira”, recorda a profissional, explicando que, naquela época, vestibular era desconhecido para quem fosse do interior.

Na época, Sila tinha duas opções para vestibular: Bioquímica ou Educação Física – afinal, ela era jogadora, lembra? Mesmo assim, decidiu pelo primeiro curso na UFSM, que deu errado. Porém, tal qual quando você erra um ponto no jogo de voleibol, não significa o fim da partida. Sila recebeu da sua prima que cursava Arquitetura na Universidade do Vale do Rio do Sinos (UNISINOS) um folder com os cursos oferecidos pela instituição. “Foi quando eu vi escrito ‘NUTRIÇÃO’ e uma grande similaridade com Bioquímica”, relembra. Em um sotaque gaúcho tradicional, o pai de Sila perguntou “…tu queres ir estudar lá?”. E ela disse que, sim. Ela acaba de ganhar um set da partida que era sua vida.

Sila não se arrepende. Ela tinha ciência de que seria um desafio enorme, pois era uma universidade particular e seria um investimento muito grande para pai, que trabalhava duro para sustentar as filhas. Esse início já sinalizava uma das marcas da trajetória de Sila Mary: transformar obstáculos em oportunidades.

Início na universidade

Em 1975, Sila entrou no curso de Nutrição na Unisinos e se formou em 5 anos. Entre as matérias que eram oferecidas, envolvia um ciclo básico de 10 disciplinas que o aluno tinha que cursar, incluindo a extinta cadeira de Estudos de Problemas Brasileiros, que era obrigatória na época da Ditadura Militar.

No primeiro ano, reprovou em uma disciplina. Dessa vez, o time adversário marcava ponto. Mas ela não desistiu. A reprovação foi na disciplina de Sociologia e o professor havia respondido, em uma conversa despretensiosa, de que ela “era muito autossuficiente”, por isso a reprovação. Se foi justa ou não, isso não impediu Sila de buscar outras oportunidades.

Vale lembrar que nas universidades particulares, ao reprovar em uma matéria, você precisa pagar novamente para refazê-la. Por isso, inscreveu-se num curso de férias de Histologia e tornou-se monitora da disciplina. Essa posição rendeu-lhe uma bolsa que ajudou a pagar parte da mensalidade e lhe proporcionou vivência acadêmica intensa. “Quando alguém lhe dá um limão, deve fazer dele uma limonada. Foi o que fiz”, conta.

O placar virou a favor de Sila. Ela teve experiência em monitoria com outras disciplinas igualmente, o que gerou maior envolvimento dela com essa área acadêmica. “Essas atividades me renderam muita experiência, pois eu ajudava em aulas práticas, auxiliava docentes na correção de trabalhos e isso fez uma extrema diferença quando eu me tornei professora na Universidade Federal do Paraná”.

Sila posando para o quadro da primeira turma do curso em 31 de março 1984. Foto: Arquivo Pessoal

Os primeiros passos no mercado e a chegada a Curitiba

Formada em 1979, Sila Mary iniciou sua carreira profissional em Santa Catarina, numa empresa de consultoria especializada em restaurantes institucionais e comerciais. Atuou em Florianópolis e Blumenau, onde chegou a elaborar projetos para cozinhas industriais, algumas ainda em funcionamento.

Entre as principais dificuldades percebidas pela profissional foram as dificuldades e o desconhecimento da área na época. “Existiam muitos profissionais oportunistas que achavam que conheciam a ciência da Nutrição. Precisávamos mostrar nosso papel a todo instante, não com bandeiras, mas com ações para mostrar a necessidade do profissional”, detalha.

Em 1981, migrou para Curitiba para integrar o recém-criado curso de Nutrição da UFPR, onde se tornaria professora titular. “Quando entrei como professora no Curso de Nutrição da UFPR, não havia docentes suficientes. Foram muitos desafios e momentos marcantes na minha caminhada, o que me rendeu um aprendizado imensurável”, relata.

Foto: Arquivo Pessoal

Sua trajetória na UFPR confunde-se com a história da Nutrição no Brasil. Sila participou dos debates sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais na década de 1980, que redefiniram as dimensões e habilidades do nutricionista. Assistiu ao nascimento da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN), em 1999, e acompanhou o fortalecimento da Segurança Alimentar e Nutricional, que colocou o país em posição de referência internacional. “A partir desse marco, a Ciência da Nutrição no Brasil passou a ser referência mundial na Política de Segurança Alimentar e Nutricional”, explica.

Sila Mary, participou ativamente da Criação do Curso de graduação em Nutrição da UFPR, no início da década de 80 e foi protagonista da criação do Programa de Pós-Graduação em alimentação e Nutrição, também da UFPR.

Primeita turma do Programa de Pós Graduação em Alimentação e Nutrição (PPGan) da UFPR em 2011. Foto: Arquivo Pessoal
Foto da disciplina de Controle da Qualidade na Pós-Graduação. Foto: Arquivo Pessoal

Uma ciência em evolução: a Nutrição ontem e hoje

Ao longo das últimas quatro décadas, Sila Mary testemunhou profundas transformações na área. “O que mais evoluiu foi em relação à produção do conhecimento. A partir da década de 1990, os cursos de Nutrição começaram a ter um olhar para pesquisa e produção científica. Surgiram novos cursos de mestrado e doutorado, e essa visão, passada pelos docentes, contribuiu para estimular os discentes, resultando em profissionais mais preparados”, avalia.

Ela reconhece, no entanto, que a expansão acelerada de cursos pode comprometer a qualidade da formação. “O excesso de cursos também fez com que a formação fosse prejudicada em alguns casos, resultando em profissionais não preparados”, pondera.

Para Sila, a tecnologia representa outro divisor de águas na atuação do nutricionista. Consultas remotas, inimagináveis há algumas décadas, tornaram-se realidade. “Essa ferramenta deve ser usada com bom senso, pois a presença física do profissional é importante. A tecnologia deve ser usada com parcimônia”, afirma.

Mais do que professora, Sila Mary vê sua missão atual como a de abrir caminhos para os novos profissionais. “Amo o que faço. Trabalho com prazer. Sinto-me muito feliz acompanhando a trajetória de um egresso, quando entra e quando finaliza o curso. A evolução que teve. Principalmente para os estudantes de mestrado e doutorado, estou sempre dizendo que minha função, hoje, é abrir portas. Aqueles que desejarem se empoderar entram”, conta.

A docente se orgulha de sua posição como referência e considera o conhecimento um bem inesgotável. “Nosso conhecimento deve ser como um rio, nunca parar de correr. Precisamos estar sempre evoluindo”, aconselha aos nutricionistas mais jovens.

Foto na Revista Alimentação e Nutrição a respeitoa da criação da Associação de Nutrição do Paraná. Foto: Arquivo Pessoal.

A maturidade como força transformadora

Com mais de 60 anos, Sila Mary defende que a produção do conhecimento não tem idade. Para ela, a experiência adquirida ao longo da vida oferece aos profissionais mais maduros uma espécie de “licença poética”. “Nesse momento da vida, nossa função é deixar a porta aberta para os mais jovens entrarem. Aqueles que desejarem podem se aproveitar (no bom sentido) e se empoderar de um conhecimento já vivido, experimentado. Essa é nossa missão como docentes e nutricionistas maduros”, diz.

Ela também acredita que a Nutrição é uma ciência insubstituível pela inteligência artificial. “A IA oferece ferramentas e um potencial transformador na área da Nutrição. No entanto, é fundamental que o profissional utilize essa ferramenta de forma ética e responsável”, enfatiza.

GALERIA DO TEMPO

Inspirando o futuro da Nutrição brasileira

Com sua trajetória, Sila Mary personifica o propósito do projeto “Valorizando os Profissionais 60+”: reconhecer os pioneiros que enfrentaram contextos adversos e pavimentaram o caminho para as novas gerações. Sua história ilustra não apenas as mudanças na profissão, mas também a força de quem construiu, com dedicação, um campo hoje consolidado.

“Quando estamos maduros temos a licença poética ao nosso favor, porém sem perder a responsabilidade da produção do conhecimento”, sintetiza. Essa frase, que ecoa como um manifesto, traduz a essência de uma carreira dedicada à ciência e à formação de profissionais. A conclusão que podemos ter é que nessa partida que é a vida, a Sila saiu vitoriosa. E toda essa trajetória só foi possível, porque um dia ela decidiu jogar voleibol.

Por Pedro Henrique Oliveira Macedo – Jornalista