Levantamento inédito revela desafios de nutricionistas para garantir alimentação escolar saudável e adequada
Condições adequadas para execução do PNAE não são asseguradas por quase metade das entidades executoras; E nutricionistas alertam para número insuficiente de profissionais
Um levantamento nacional inédito com 970 nutricionistas que atuam no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) revela uma ampla aprovação às diretrizes do programa, dentre as quais as que restringem a oferta de ultraprocessados, mas aponta grandes entraves para a sua efetivação.
Realizada pelo Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), a pesquisa faz parte da série “Conta pra Gente” e buscou ouvir, em 2025, a percepção das profissionais responsáveis por planejar cardápios, acompanhar a execução do programa e promover atividades de Educação Alimentar e Nutricional (EAN). Mais de 20% do total de profissionais que atuam no PNAE participaram da pesquisa.
Para quase metade delas (47%), as Entidades Executoras onde atuam — secretarias de educação estaduais, municipais, do Distrito Federal e instituições federais de ensino — não dispõem das condições mínimas para cumprir as exigências nutricionais do programa. E 83% consideram o número de nutricionistas insuficiente.
O estudo confirma que, embora o PNAE seja reconhecido como uma das políticas públicas de maior alcance social do país, há uma distância entre as diretrizes estabelecidas e as condições reais de execução.
“O Brasil tem um dos programas de alimentação escolar mais avançados do mundo, mas não basta termos boas leis e normativas, se as condições reais para cumpri-las não são permanentemente asseguradas, a partir do compromisso das três esferas de governo”, resume Mariana Santarelli, coordenadora do ÓAÊ.
Para as nutricionistas, o reajuste dos valores repassados por estudante (per capita), a ampliação de equipes técnicas e o investimento em infraestrutura escolar são medidas urgentes para garantir refeições saudáveis, culturalmente adequadas e livres de ultraprocessados.
O levantamento foi sistematizado na publicação “Levanta Dados Nutricionista: O que pensam sobre as diretrizes e condições de implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar”, que será lançada na próxima quarta-feira (24), às 16h, em webinar com transmissão ao vivo no YouTube do ÓAÊ.
Perfil das nutricionistas
O mapeamento aponta uma predominância das mulheres à frente da função, sendo elas 94,8% das participantes da pesquisa. A maioria possui idades entre 25 e 44 anos (79,5%). Quase 84% atua na rede municipal de ensino, em sua maioria em cidades de pequeno porte (63,9%). Mais da metade (56,7%) exerce a função de Responsável Técnica, encarregada da elaboração e supervisão dos cardápios, enquanto 41,4% integram os quadros técnicos de apoio.
Pouco mais da metade se identifica como branca (53,8%), enquanto 44,6% como pretas ou pardas. Apenas uma nutricionista participante da pesquisa se identificou como indígena. Não foram registradas participações auto-identificadas de quilombolas ou pertencentes a outras comunidades tradicionais.
Condições de execução do PNAE
Um dos resultados mais preocupantes aponta que quase metade (47%) das Entidades Executoras — secretarias de educação estaduais e municipais — não dispõem de condições adequadas para cumprir as exigências nutricionais do programa. Fatores como falta de infraestrutura, equipamentos de cozinha, orçamento limitado, baixa aceitação dos cardápios e número reduzido de cozinheiras comprometem diretamente a oferta de refeições saudáveis.
Entre os maiores obstáculos, destacam-se a dificuldade de atender estudantes com necessidades alimentares especiais (devido à ausência de diagnósticos no SUS e alimentos específicos), a resistência da comunidade escolar à redução de ultraprocessados e os impactos da inflação no preço dos alimentos.
Apesar da exigência legal, o número de nutricionistas ainda está muito aquém do necessário: em 2023 havia 4.255 profissionais vinculados ao PNAE em todo o país, quando seriam demandados milhares a mais para atender ao volume de estudantes. O dado é confirmado pelas próprias entrevistadas: 83% consideram o número de nutricionistas insuficiente.
Restrição de ultraprocessados
A publicação da Resolução FNDE nº 3/2025, que reduziu de 20% para 15% o limite de gastos com processados e ultraprocessados em 2025 (e para 10% a partir de 2026), foi bem recebida pela maioria das nutricionistas: 68,6% concordam totalmente com a medida. Porém, muitas alertam para dificuldades práticas, como orçamento insuficiente, e falta de infraestrutura e pessoal para preparar alimentos in natura, mas chama atenção também a resistência de estudantes e famílias.
Para a maioria das nutricionistas (54,5%), a resistência da comunidade escolar é um dos fatores que influencia negativamente a oferta de uma alimentação adequada e saudável. Para além das limitadas condições humanas e materiais, essa resistência é uma das principais razões que impedem a plena implementação da Resolução n°06/2020 – que estabeleceu metas de oferta de frutas, legumes e verduras, e restrições e proibições a ultraprocessados e açúcar – para a promoção de uma alimentação saudável e adequada no ambiente escolar.
Os dados trazem um alerta: a alimentação oferecida nas escolas da rede pública de ensino, cada vez mais saudável e diversificada, vai na contramão do que está acontecendo nas casas dos estudantes.
“Esta é uma realidade que precisa ser enfrentada com seriedade, e que exige um conjunto de políticas que passam necessariamente pela educação alimentar e nutricional (EAN) nas escolas, mas também pela regulamentação da publicidade voltada ao público infantil, a taxação de ultraprocessados e bebidas açucaradas, dentre outras medidas regulatórias”, defende o estudo em suas conclusões.
“Na teoria, concordamos plenamente. Mas na prática, é quase impossível cumprir sem reajuste do repasse do PNAE e sem apoio para conscientizar a comunidade escolar”, relatou uma das nutricionistas.
Educação Alimentar e Nutricional (EAN)
Embora 82% das profissionais afirmem que suas entidades realizam atividades de Educação Alimentar e Nutricional (EAN), 60,6% consideram a carga horária insuficiente para desenvolvê-las de forma efetiva. E apenas 32% participam do planejamento pedagógico das escolas, limitando a integração da EAN ao currículo.
Agricultura familiar e desenvolvimento local
A pesquisa mostra avanços na compra de alimentos da agricultura familiar: 91,8% das entidades compram diretamente de agricultores e 73,7% garantem o mínimo de 30% dos recursos para compras da agricultura familiar.
Terceirização divide opiniões
A terceirização da alimentação escolar também foi tema central. Mais da metade das entrevistadas (55,8%) não se posiciona contra nem a favor, avaliando que a qualidade do serviço é o fator determinante, enquanto 27,1% são complementarmente contra.
Ao expressarem suas visões, apontam riscos da terceirização como perda de qualidade e quantidade da alimentação, precarização do trabalho e interrupção das compras da agricultura familiar. Essas visões vão de encontro ao que apontam relatórios do TCU que demonstram que este modelo de gestão não soluciona as principais falhas do PNAE, sendo ainda encontradas outras irregularidades que começam desde a lisura do processo licitatório, passando por descumprimento dos cardápios, das contratações e compras da agricultura familiar.
Conflito de interesses e pressões externas
Um dado alarmante é que 47,5% das nutricionistas já presenciaram casos em que interesses políticos ou econômicos interferiram negativamente nas decisões sobre a alimentação escolar. Além disso, ainda que a maioria das escolas esteja livre de influências da indústria de ultraprocessados, foram relatadas situações de distribuição de amostras grátis, visitas a fábricas e patrocínios.
“Mais uma vez vemos a importância do controle social e exigibilidade do direito à alimentação escolar. Precisamos de sistemas de prestação de contas mais transparentes, que permitam o acesso a dados em tempo real, para que os conselhos de alimentação escolar, procuradoria, defensoria, e a sociedade civil em geral possam monitorar o programa. Além de canais de denúncia mais eficientes e CAEs fortalecidos, com as devidas condições para a sua atuação voluntária”, defende a coordenadora do ÓAÊ.
Lançamento dos resultados em webinar com transmissão ao vivo
A íntegra dos resultados do estudo serão apresentados no webinar “Como nutricionistas avaliam as condições de implementação do PNAE?”. Participam do lançamento: Albaneide Peixinho, presidente da Associação Brasileira de Nutrição (Asbran).; Erika Carvalho, presidenta do Conselho Federal de Nutrição (CFN); Fátima Fuhro, presidente da Federação Nacional dos Nutricionistas (FNN); Liduína Lavor, nutricionista responsável técnica do PNAE em Quixada (CE), Priscilla Aoki, nutricionista responsável técnica do PNAE em Maracaju (MS); e mediação de Mariana Santarelli, coordenadora do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ).
O evento terá transmissão ao vivo nesta quarta-feira (24), a partir das 16h, pelo YouTube do ÓAÊ.
Reprodução: Yuri Simeon, assessor de comunicação do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ) | (15) 98187-2633 | ascom@alimentacaoescolar.org.br