Valorizar a cultura indígena é proteger a segurança e soberania alimentar desses povos

Valorizar a cultura indígena é proteger a segurança e soberania alimentar desses povos

No Dia dos Povos Indígenas, o CRN-8 convidou a estudante Gislaine Kanhgág, indígena Kaingang, para compartilhar seu relato sobre a alimentação em sua comunidade de origem


Celebrado em 19 de abril, o Dia dos Povos Indígenas é um convite à reflexão sobre os direitos, as culturas e os desafios enfrentados por mais de 300 etnias que vivem no Brasil e se comunicam em aproximadamente 274 idiomas distintos. Os indígenas representam menos de 1% da população brasileira e enfrentam sérias consequências das transformações em seus modos de vida, como o avanço de doenças crônicas e da insegurança alimentar. Esses dados foram revelados no Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição dos Povos Indígenas, coordenado pelo pesquisador Carlos Coimbra Jr., da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), que delineia um retrato detalhado das condições de vida dessas populações.

Para além de dados científicos, o CRN-8 optou por valorizar a perspectiva de quem vivencia essa realidade. Convidamos Gislaine Kanhgág, indígena Kaingang e estudante de Nutrição na UFPR, para relatar sua experiência. A seguir, publicamos seu depoimento na íntegra, com pequenas adaptações de estilo. Ao relatar sua história, ela oferece um ponto de vista sobre sua comunidade, especificamente. A escuta atenta dessa narrativa é também um gesto de respeito, reconhecimento e compromisso com a causa indígena.

Gislaine Kanhgág é indígena Kaingang e estudante de Nutrição na UFPR

Pergunta: Você percebe que existe uma mudança alimentar onde o consumo de alimentos não tradicionais está aumentando?

Resposta: Desde minha infância, como indígena da etnia Kaingang e ao conviver com outros povos indígenas como os Guarani, Guarani Mbya, Charrua, Kaingang e Xokleng — povos situados majoritariamente no Sul do Brasil — percebo com clareza as transformações alimentares que atravessam nossas comunidades. Sabemos o que significa “alimento forte” e “alimento fraco”, conforme descrevo em minha pesquisa Ciência Ancestral, Tecnologia Indígena e Saúde: discutidas a partir da riqueza nutricional do prato típico Kaingang “Fuá com Ẽmĩ” determinada a partir da análise físico-química de sua composição. Esses conceitos estão profundamente enraizados em nosso conhecimento ancestral, transmitido oralmente ao longo de milhares de gerações.

Observação ao leitor: leia o trabalho de Gislaine nos Anais da V Conferência de Teoria Histórico Cultural e CTS – Ciência Tecnologia e Sociedade clicando aqui.

Minha pesquisa revelou que a diferenciação entre alimentos fortes e fracos não se trata apenas de sabor ou aparência, mas diz respeito às propriedades nutricionais e ao impacto direto no corpo e na mente — um saber construído pela observação cuidadosa de nossos ancestrais. Entretanto, desde o colonialismo, nossas práticas alimentares vêm sendo profundamente afetadas. A pressão para consumir alimentos processados e ultraprocessados cresceu, impulsionada pelo acesso limitado aos alimentos tradicionais, pela sazonalidade e pela imposição de modelos alimentares ocidentais. Muitos desses alimentos, alheios à nossa dieta original, foram incorporados ao cotidiano, impactando negativamente nossa saúde, nossa relação com o território e nossos modos de ser.

Apesar dessas mudanças, é alentador perceber que os conhecimentos ancestrais seguem vivos entre nós. A sabedoria sobre o que é um alimento forte, por exemplo, continua sendo repassada oralmente, não apenas entre os Kaingang, mas entre diversos povos originários que hoje somam mais de 300 nações. Esse conhecimento ancestral representa resistência, identidade e soberania.

Na Aldeia Araçaí, situada em Piraquara/PR, por exemplo, onde trabalho com ações de segurança alimentar e nutricional, o acesso a alimentos de qualidade é um desafio cotidiano, essa transição alimentar é visível. A distância da cidade dificulta o acesso a alimentos frescos e tradicionais. Embora programas de assistência alimentar busquem garantir o direito à alimentação segura e nutricionalmente adequada, na prática, a falta de infraestrutura, recursos para plantio sustentável e apoio à produção tradicional limita a efetividade dessas políticas. Além disso, a urbanização ao redor da aldeia, o deslocamento de indígenas para trabalhos precários nas cidades e a luta constante por demarcação de território interferem diretamente na produção e consumo de nossos alimentos autóctones.

Por exemplo, alimentos tradicionais como o milho, a mandioca, o fuá e o ẽmĩ — de alto valor nutricional e cultural — têm sido gradualmente substituídos por biscoitos recheados, farináceos, embutidos e bebidas artificiais. Essa mudança é atravessada por múltiplas pressões: a influência dos mercados e escolas que não valorizam os alimentos indígenas, o acesso limitado à terra e à infraestrutura para plantio, e a própria falta de recursos financeiros e físicos para preparar a terra. Como relataram moradores locais, esses fatores dificultam o cultivo e a continuidade da agricultura tradicional.

É perceptível uma mudança alimentar significativa entre os povos indígenas. Essa transformação está ligada a fatores complexos, como a dependência crescente de programas de assistência alimentar e os desafios estruturais na aplicação dessas políticas públicas. Embora o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) tenham como diretrizes o fornecimento de alimentos saudáveis e culturalmente adequados, muitas vezes não contemplam os alimentos indígenas por dificuldades logísticas, exigência de regularização sanitária, emissão de nota fiscal e falta de estrutura para o escoamento da produção.

Além disso, também percebo que a ausência de diálogo com as comunidades quanto às suas necessidades e preferências alimentares faz com que esses programas, em muitos casos, incluam alimentos ultraprocessados por serem mais fáceis de armazenar, transportar e preparar. Assim, mesmo com o respaldo legal que garante o direito à alimentação adequada — previsto na Constituição Federal e na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) —, sua execução acaba reforçando uma lógica assistencialista e comprometendo a soberania alimentar indígena.

Outro ponto fundamental é a não demarcação dos territórios e o adensamento populacional em áreas já reduzidas por políticas colonizadoras. Isso impacta diretamente a possibilidade de plantar roças, coletar alimentos da mata e até mesmo pescar, afetando a disponibilidade dos alimentos naturais e autóctones. A luta pela segurança e soberania alimentar dos povos indígenas passa necessariamente pela valorização de seus saberes, pelo respeito às suas culturas e pela efetiva garantia de seus direitos territoriais.

Pergunta: O inquérito de nutrição dos povos indígenas escrito em 2009 mostra que indígenas apresentam altas proporções de anemia e sobrepeso. Você percebe que esse dado se mantém atual hoje em dia?

Resposta: Sim, eu percebo que esse dado do inquérito de 2009 ainda é muito atual. Inclusive, eu tenho uma vivência direta que mostra isso. Nos anos 2000, quando eu era criança, minha mãe, que é técnica de enfermagem, adotou um menino indígena como nosso irmão. Ele chegou na nossa casa com aproximadamente um ano de idade, pesando apenas 4,200 kg. Tinha os cabelos bem amarelados, a barriga grande, sinais claros de desnutrição e foi diagnosticado com anemia ferropriva. A gente morava no Gramado dos Loureiros, no Rio Grande do Sul, e essa realidade era bastante comum nas comunidades indígenas da região.

Mesmo hoje, passados mais de 20 anos, vejo que essas situações continuam se repetindo em muitos territórios indígenas. A anemia ainda é muito presente nas crianças, e o sobrepeso e a obesidade têm aumentado entre os adultos. Isso mostra que a transição alimentar e a insegurança nutricional continuam afetando a saúde dos nossos povos. A gente vê isso na prática, no dia a dia, nas comunidades. Por isso, acredito que os dados do inquérito de 2009 continuam sendo um retrato atual da situação nutricional indígena no Brasil.

Pergunta: O que te motivou a cursar Nutrição e como pretende contribuir com a pesquisa em povos indígenas?

Resposta: Para ser bem sincera, quando entrei no curso de Nutrição eu não tinha praticamente nenhum conhecimento sobre a área. Isso porque minha trajetória foi marcada por desafios no acesso à educação — cresci em território indígena, estudando em escolas da comunidade ou próximas, onde o ensino era bastante limitado. Mas essa realidade nunca me desmotivou.

Foi minha irmã que me influenciou a seguir esse caminho, e com o tempo, principalmente através das vivências práticas e do contato direto com as necessidades da minha comunidade, fui compreendendo a real importância de termos nutricionistas atuando nos territórios indígenas.

Hoje, vejo que a Nutrição Pública pode (e deve) ser um instrumento de transformação. Quero falar sobre soberania alimentar entre os meus, mostrar que o nosso conhecimento ancestral tem valor, tem força — e mais do que isso, ele está reconhecido em leis. Precisamos conhecer esses direitos e cobrar sua efetivação.

Quero contribuir com pesquisas que valorizem os saberes indígenas, que respeitem a cultura alimentar dos nossos povos e que caminhem junto com nossas lutas por saúde, território e dignidade.

Conheça mais do trabalho realizado no Projeto de Extensão Ações de SAN em Piraquara aqui.

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